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não mais país de dores anônimas

brasil. um homem branco e seu paletó cinza, sorriso de escárnio no canto dos lábios, apareceu num vídeo veiculado na internet para dizer que “a arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional.” em tom de profecia, disse que a arte da próxima década será “dotada de grande capacidade de envolvimento emocional, e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo, ou então não será nada.” não demorou para descobrirem que, ecoando a voz presidencial, as palavras do homem branco (o quarto de uma lista com cinco ex-secretários da cultura no atual governo), inspiraram-se no discurso do ministro da propaganda na alemanha nazista, entre 1933 e 1945.
o caso pareceu morrer na praia, como moema. alguns meses depois, sua sucessora, uma atriz e hoje também ex-secretária da cultura, apareceu em rede nacional em semelhante escárnio. na entrevista dada por ela, foi minimizado o número de vítimas tanto da ditatura militar brasileira, quanto da atual pandemia. autorizadas, ambas as vozes causaram alguma revolta, mas nenhuma responsabilidade lhes foi atribuída. a história seguia rubricada pelas assinaturas que institucionalizam a barbárie, naturalizando-a.
ao revisitar o que oswald de andrade em 1928 reivindicou como um mundo não datado e não rubricado, talvez seja possível perceber como essa sensação de mal-estar é um propósito bem-articulado. um projeto que atravessa as temporalidades de uma década de vinte a outra. assim, quase cem anos depois, a fixação pela ideia de progresso, criticada pelo poeta naquele brasil modernista, ainda gera discursos morais que envenenam o próprio desejo de uma prática culturalmente antropofágica—até então uma promessa contra todas as catequeses.
em seu manifesto, oswald se arrisca a prever uma desautorização desse propósito que já se enraizava na cultura brasileira. uma cultura feita por importação e apropriação: do passado escravagista até os dias atuais. tardiamente, 400 anos depois das primeiras invasões, buscava-se nomear as dores anônimas de um país esculpido pela violência de genocídios e epistemicídios.

no entanto, a aplicabilidade da antropofagia enquanto estratégia para romper com a colonialidade também parece ser confrontada. se antes pretendia-se profanar o insuspeito requinte dos países acima da linha do equador a partir da consciência de uma cultura naturalmente laboriosa, agora a própria crítica é posta em crise. a manutenção de estímulos excessivamente visuais parece repelir da autoconsciência brasileira sua natureza originária e encantadora. criminalizam-se os demais sentidos em benefício do óptico, e não mais pelos mares chegam os invasores, mas pelas janelas luminosas que transformam indivíduos em usuários em vez de cidadãos.
existirá espaço para isso que chamamos arte e que convenciona ao homem branco em seu paletó cinza dizer sob quais moldes será erigida a próxima década? se para oswald era necessário deglutir o que vinha de fora, a tal da consciência enlatada, agora talvez seja imperativo a reapropriação das linhas imaginárias que desenharam a ideia de arte. da redescoberta de uma gramática própria para que a antropofagia não mais pareça destinada apenas aos floreios de textos intraduzíveis da nossa própria língua.
nem manifesto, nem manual. antes tivéssemos entendido que, para essa antropofagia oswaldiana, mover as mandíbulas contra todo e qualquer bom sentimento português seria sinônimo de defender cada vez mais nossas rejeições. reagir à aparência, à cópia, ao sabor que não vem dos trópicos. quando não podendo rejeitar, expelindo com o suco gástrico todos os dejetos do produto híbrido que ainda restar no estômago.
trazer à tona o pão com ovo, as marmitas, os terrenos baldios deixados ao meio do caminho do progresso apartado e seletivo, as marimbas e gambiarras como tecnologias dos subúrbios, as faixas de ráfia para uma nova onda de propaganda, de tomada política1. a poesia de uma nova gramática, que não recorra à aparência bucólica e à morbidez romântica, mas às imagens que se revelam intraduzíveis aos nossos predadores. nem bispos, nem peões: um outro jogo ao qual o anagrama oficial para américa seja “é marica”2. a poesia e a arte como retomada discursiva de vozes que não se escondem na falsa docilidade dos discursos parlamentares, mas que sussurram em conjunto. como pedra, desautorizar a eugenia da vidraça. como iguaria tropical, surpreender e provocar a úvula para ver o que acontece.
- esse verso elenca uma sequência de signos com os quais me interesso também na produção com as artes visuais. trata-se em sua maioria de elementos característicos de regiões suburbanas e/ou periféricas, onde a precariedade revela um forte caráter inventivo diante às assimetrias sociais que afetam o brasil. revelando, assim, produtos culturais que raramente são retratados na ideia de cartão postal com a qual o país vem sendo representado na mídia internacional.
- dezembro de 2020: em entrevista, ao ser pressionado para a retomada do turismo no país, o atual presidente brasileiro trata a pandemia como superdimensionada, dizendo que o brasil "tem que deixar de ser um país de maricas e enfrentar a doença”. na ocasião, ele emprega a palavra de modo pejorativo, um modo popularmente usado para se referir a pessoas homossexuais. por isso convoco aqui o anagrama proposto por francisco mallmann, poeta que atua na intersecção entre filosofia, crítica, arte contemporânea, literatura e dramaturgia.
rafael amorim (1992) acredita na não hierarquia de uma palavra sobre a outra, é artista visual graduado pela escola de belas artes da universidade federal do rio de janeiro, poeta, pesquisador e curador independente. além de investigar a relação entre as artes visuais com a prática escrita, trabalha com a reorganização de elementos sensíveis ao território urbano.