Critics Page
Os filhos da nação
No seu texto paradigmático Disemi-nation: Time, Narrative and the Margins of Modern Nation2 Homi Bhabha fala da necessidade de distinguir entre duas temporalidades de nação: a primeira, a pedagógica, envolve o ensino e aprendizagem de seus princípios e história ao povo. A segunda, a performativa, que há de ser repetida no tempo e se reproduzir no presente para legitimar o discurso nacional ensinado, envolve por isso demonstrá-lo e ser sua representação em vida. Continuando com essa ideia de performatividade, poderíamos pensar a nação como pai narcisista que espera ver seu reflexo, suas proezas e aspirações belamente projetados nos cidadãos e, assim os intelectuais serão seus melhores ideólogos: como dizia o poeta e ensaísta modernista Mário de Andrade nos anos 20, era muito urgente assumir a tarefa de “dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é sublime. E nos dá a felicidade.”3 Em outras palavras, era urgente conceitualizar a nação. Para esse fim, Mário de Andrade viajou por todo o Brasil onde empreendeu estudos pioneiros sobre a cultura popular. A partir dessa experiência, escreveu seu famoso livro de aventuras Macunaíma com um protagonista popular feito de retalhos de suas pesquisas e de trechos célebres de antropólogos europeus, cujo protagonista ele descrevia como o herói brasileiro sem nenhum caráter, ou seja, sem alma. Em contraste com esse autor que não saiu do Brasil nem para apresentar as traduções de suas obras em Nova Iorque ao final da vida, dois intelectuais da época se inspiraram por suas viagens internacionais para criar dois conceitos que se converteriam em fundamentais para entender a história nacional. A Antropofagia (1928) do também modernista Oswald de Andrade e a democracia racial do Gilberto Freyre, que bem poderiam ser dois filhos típicos desse modelo de família jovem narcisista e disfuncional: o primeiro o chamado bode expiatório (Scapegoat) e o segundo denominado o menino de ouro (Golden Child).4
O primeiro foi objeto de muitos tipos de desprezo por não estar à altura das aspirações paternas, habitando um mundo de ostracismo e negação; enquanto o segundo recolhia todos os méritos da versão mais reluzente da família, foi alimentado pelo sonho narcisista e conformado por ele. A ideia da democracia racial foi a grande peça articuladora dos discursos nacionais até o final da ditadura brasileira nos anos setenta.5 Nesse momento, militantes do movimento negro se dedicavam a desmascarar a condição colonial por trás desta ideia, quanto as aspirações conservadoras de uma noção falsa de democracia que naturalizava as desigualdades em nome do grande conceito da cultura.
Freyre, fazendo trapaças na apropriação de estudos inovadores em torno de cultura e raça criados por Franz Boas (que foi seu professor na Universidade de Columbia), ao voltar ao Brasil, descreveu a desigualdade e pobreza como uma questão de tradição, derivados da natureza cultural masoquista subalterna. Tal era o sentido celebratório da desigualdade por ele conceituado num documentário de 1974, onde aparece um Freyre com quase 90 anos, diante de sua mansão nordestina relatando como, ao terminar seu livro Casa Grande e Senzala, os amigos comemoraram em sua casa com uma grande festa-surpresa carnavalesca onde se fantasiavam de índio, negro ou senhor.6
Por enquanto, como em muitas famílias narcisistas, o bode expiatório afastado da autoridade paterna chega num momento de maturidade, florescimento e desdobramento de todo seu potencial. É o caso do importante conceito da Antropofagia cultural lançado em 1928 com a Revista da Antropofagia. Mas, a partir dos anos 30, essa proposta talvez tenha caído em desgraça porque seu autor, Oswald de Andrade, passou a militar no Partido Comunista, renegando a sua condição de elite intelectual burguesa ostentada nos felizes anos vinte quando se relacionava com a vanguarda artística de Paris e com sua companheira milionária Tarsila do Amaral. Precisamente, em 1933, escrevia: “fui um palhaço de categoria. Animado pelas expectativas, aplausos e miudezas capitalistas, meu ser literário se travou várias vezes na trincheira social reacionária.”7 Após a Segunda Guerra Mundial, um Oswald de Andrade já desencantado com o comunismo escreveu de novo sobre a Antropofagia, a apresentando como um novo método filosófico para sua defesa da cátedra como docente na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo.8
Foi então que no começo da revolucionária década 70, vários intelectuais de esquerda retomaram o conceito silenciado de Antropofagia seguramente inspirados por essa renovada aparição e pelos paralelismos ao espírito de ruptura dos anos 20. Esses autores desdobraram o potencial do conceito ao explicar uma mestiçagem brasileira transgressora, contestando o conservadorismo de Freyre defendido pela ditadura e o mais importante: uma grande capacidade de dialogar com o pensamento vanguardista internacional. A Antropofagia explicava por fim, a condição híbrida e deglutidora do pensamento Europeu no Brasil, que era reelaborado para se converter na contribuição específica brasileira original: a expressão de sua modernidade pós-colonial.
Mas a verdade é que tanto a direita como a esquerda naqueles anos (e por extensão os irreconciliáveis irmãos democracia racial e antropofagia), continuavam disputando o mesmo objetivo: a definição do velho patriarca da nação, criando conceitos que pudessem veicular a performatividade que Bhabha explicava. Mas não se há de esquecer que a nação é uma instituição moderna colonial que foi um dos grandes cúmplices da colonialidade. Embora a antropofagia tenha se convertido até hoje num dos grandes produtos internacionais super-explorados pela intelectualidade brasileira de elite, o conceito também usava a imagem da alteridade colonial indígena como meras representações, despolitizando sua presença real e suas lutas contemporâneas locais. Não seria por acaso que se desconheça a razão pela qual Mário de Andrade rompeu sua relação com seu grande amigo modernista Oswald de Andrade ao final dos anos vinte e, durante toda a vida, recusasse uma reconciliação, doído pelas atitudes racistas que acompanharam o lançamento da revista antropófaga.9
No entanto, desde a instituição das cotas para negros e indígenas nas universidades brasileiras em 2012, uma nova descendência dessa grande e numerosa família, mais marginal e invisível do que o bode expiatório, já está empreendendo importantes revisões mostrando como o elitismo dos antecessores promoveu o colonialismo interno. Interrompendo a performatividade que sustentava ao patriarca da nação, e livrados de demonstrar sua lealdade, esta já imparável geração está mostrando como a colonialidade se camufla nas grandes dissertações intelectuais dos antecessores, começando, claro, com a Antropofagia.
- Texto dedicado à minha irmã Ainoa Iñigo Clavo, vizinha do bairro de Harlem e devoradora de literatura latinoamericana.
- Homi Bhabha, The Location of Culture (London: Routledge, 1994)
- Mello e Souza, G. de y Campos Vergueiro, L. Mario de Andrade. Obra escogida. (Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1979).
- Gershelis, Anna, Relationship Between Perceived Narcissistic Personality Traits in Mothers and Level of Differentiation of Self in Their Adult Children, A dissertation submitted for the degree Doctor of Philosophy in Psychology, California School of Professional Psychology. 2021
- Freyre, Gilberto. The Masters and the Slaves (Casa-Grande & Sezala): A Study in the Development of Brazilian Civilization, (New York: Alfred A. Knopf, 1963) Second English Language Edition.
- Documentário de Geraldo Sarno, Casa Grande & Senzala, 1974.
- Mello e Souza, G. de y Campos Vergueiro, L. Mario de Andrade. Obra escogida. (Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1979). Pp75-77
- Andrade, Oswald. A Crise da Filosofia Messiânica, 1950. Disertación para su puesto de profesor en la Catedra de Filosofía en la Facultad de Filosodía de la Universidade de Sao Paulo. En Andrade Oswald, De Pau Brasil à Antropofagia e às Utopías.
-
Mello e Souza, Op cit, 1979, p. 478
María Iñigo Clavo (1976) é pesquisadora, curadora e professora na Universidade Aberta de Catalunha e no Mestrado de Curar Arte e Programas Públicos na Galeria Whitechapel em Barcelona. Ela escreveu textos para publicações como e-flux, Third Text, Afterall, Stedelijk Journal, O Museu de Arte de São Paulo, O Museu Fran Hals/De Hallen Haarlem, Valiz, L’international ou Museu Rainha Sofia. Foi editora da edição # 7 (2017) da revista Re-visiones intitulada: Is it possible to decolonize? E tomo 19 da revista Art in Translation, Universidade de Edinburgh (Taylor & Francis/Routledge).