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Os Quase-Brasileiros:

Elogio a voracidade das identidades múltiplas

Rosana Paulino,<em> Búfala</em>, 2020. Grafite e aquarela sobre papel. Cortesia do artista.
Rosana Paulino, Búfala, 2020. Grafite e aquarela sobre papel. Cortesia do artista.

O Brasil já havia deixado para trás seus dias de colônia e se afinava como Império quando Francisco Adolfo de Varnhagen remeteu seu “Memorial Orgânico” (1850) à revista Guanabara, oferecendo conselhos para melhorar o desenvolvimento da nação. Ácidos, seus enunciados sublinhavam o caráter provinciano do Brasil que, dentre tantas julgadas deficiências, seria demasiado extenso em seus domínios e excessivamente heterogêneo nas figuras de seus povos. Em um só país encontravam-se brasileiros, “escravos africanos e ladinos”, “índios bravos” e “pouquíssimos colonos europeus”, escreveu o tal visconde de Porto Seguro. Quanto à divisão do território, viam-se “muitas anomalias, (...) todos [conheciam, por exemplo] o facto tão curioso como ridículo da povoação Pedras de fogo, da qual da mesma rua pertenc[iam] à Pernambuco as casas de um lado e à Parahyba as de em frente”1.

Rosana Paulino, <em>Paraíso Tropical?</em>, 2017. Impressão digital sobre tecido, recorte, tinta e costura. Cortesia do artista.
Rosana Paulino, Paraíso Tropical?, 2017. Impressão digital sobre tecido, recorte, tinta e costura. Cortesia do artista.

Foi pelo desejo de unificar a terra e de normatizar a pluralidade de seus habitantes que forjou-se a identidade de brasileiro. Uma vez inaugurada a República, o conceito fora aprimorado; envolto na teia dos movimentos nacionalistas que se estenderam pelo século XX, o Brasileiro ganhou feição e léxico. A diversidade de outrora foi, então, convertida em boa mestiçagem, hibridismo e sincretismo, dos quais a falsa harmonia esconde as violências do apagamentos imperativos à seleção de um tipo comum e da valorização instrumentalizada dos corpos dissidentes, transformando, assim, cosmogonias em folclore dominical. Tal espetacularização foi primeiro agrupada em três “departamentos”: índios, negros e brancos. Estereotipados, eles erguem juntos a forma totêmica do Monumento às Três Raças (1968) de Goiás, simulando a união entre os três povos na construção da pátria Brasil. Contudo, a forma fálica ali içada é sobretudo o totem da barbárie, porquanto esse grande pedaço de concreto é, outrossim, a pedra sacrificial do ser como sortimento e mutação.

Evadidos dessa mutilação vivem os quase-brasileiros. Eles existem à margem, na exceção do Estado mesmo quando as circunstâncias políticas não correspondem àquelas que instauram um “Estado de exceção”2 em seu sentido jurídico. Nomeados como parte do povo brasileiro, os quase transitam suas desarmonias em meio a massa e como parte dela. Suas diferenças são constantemente operalizadas, ignoradas ou silenciadas a despeito de se refugiarem nas aldeias, nas reservas, nos quilombos, nas favelas, nos terreiros, nos desertos amazônicos e nas lajes.

Rosana Paulino, <em>Rainha</em>, 2006. Terracota e vidro. Cortesia do artista.
Rosana Paulino, Rainha, 2006. Terracota e vidro. Cortesia do artista.

Com efeito, essa condição de permanente disconformidade opera também como resistência, já que a conjuntura do quase não está condicionada à uma incapacidade desses sujeitos de imitar, sempre de modo parco, o modelo nacionalista de identidade encetado nas empreitadas coloniais. No exercício de “mímica nacionalista”3, a cópia malfeita é a estratégia de recusa ao corpo uno e constante por aquele que, dominando a arte imitação, faz da nequice a zombaria do modelo.

Dessa prática participam os artistas quase-brasileiros. Eles gingam-se em uma Arte que, apesar da sua publicidade transnacional, se diligencia para encaixá-los (bem como as suas poéticas) em categorias múltiplas, em muito herdeiras de uma perspectiva identitária essencialista. Para tanto, eles manejam a potência performativa do quase, a saber, a inconstância. Por meio dela, eles podem ser um, depois outro, e ainda um terceiro: a onça que cruza o centro da cidade de São Paulo à pés nus e acusa o fim da História da Arte de perspectiva eurocentrista4, a mulher loira e empalidecida de fenótipo negro que caminha pela Oscar Freire5, as arquétipas e ao mesmo tempo contemporâneas damas negras Búfalas da floresta6 e a profusão linguística que vai do idioma do colonizador àquele do capitalismo, sem se esquecer dos vocabulários sagrados dos ritos.

Nesse sentido, esses artistas quase-brasileiros são canibais, pois não buscam a conciliação dos corpos, devoram-os. Afastados do paradigma moderno de nação, eles deglutem as alteridades, capturando suas potências como parte de construções de destinos artísticos múltiplos, sempre recriados em novos e antepassados gestos e presenças, de formas materiais, processuais e institucionais, em que o Outro consumido no ritual canibalista do fazer é fundamental à outras formas de sociabilidade. Por isso, a cosmopolítica Tupinambá opera na elaboração de artes transnacionais.

Rosana Paulino, obras da série “Bastidores,” 1997. Imagem transferida sobre tecido, bastidor de madeira, e costura. Cortesia do artista.
Rosana Paulino, obras da série “Bastidores,” 1997. Imagem transferida sobre tecido, bastidor de madeira, e costura. Cortesia do artista.

Ao mesmo tempo, o permanente exercício antropofágico desses artistas retarda seus engolimentos pela Arte Brasileira; por meio da digestão dos inimigos devorados, os quase performam multiplicando-se infinitamente. Sempre variantes, eles são anomalias na Arte contemporânea que, assim como os Pedras de fogo, insistem em pertencer a Pernambuco e à Parahyba, e a menear-se entre essas e outras ruas sempre que julgam por bem fazê-lo.

  1. Francisco Adolfo de Varnhagen, “Memorial Organico oferrecido á nação – parte primeira”. Capítulo primeiro. O Guanabara (Revista Mensal Artistica, Scientifica e Litteraria), Ano 1850, Edição 00001(4), p. 357. Hemeroteca Digital da Biblioteca Digital Nacional Brasil, Biblioteca Nacional - RJ. Código TRB00241.0170, Label: 700630. Grafia do texto atualizada pela autora.
  2. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
  3. O termo é uma variante do conceito de “mímica colonial” de Homi Bhabha, elaborado no texto “Da mímica e do homem: a ambivalência do discurso colonial”, In: BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
  4. Denilson Baniwa, Performance Pajé-Onça caçando na Avenida Paulista (2018).
  5. Videoperformance de Renata Felinto, White Face and Blond Hair (2012).
  6. Série Búfala (2020), de Rosana Paulino.

Vivian Braga dos Santos (1987) tem um doutorado em História da Arte da USP, e é pesquisadora no Institut national d’histoire de l’art (INHA, Paris). Suas obras examinam a relação entre arte contemporânea, conflitos políticos, história e memória. Atualmente, está focando num projeto sobre as tensões entre arte contemporânea e conflitos sobre assuntos raciais no Brasil.



Rosana Paulino (São Paulo, 1967) vive e trabalha em São Paulo. Doutora em Artes Plásticas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - ECA / USP. Suas obras participaram das recentes exposições: Paraíso Tropical, The Frank Museum of Art, Otterbein University, Ohio, USA (2019); Rosana Paulino – A costura da memória, Pinacoteca de São Paulo, São Paulo, Brasil (2018); Atlântico Vermelho, Padrão dos Descobrimentos, Lisboa, Portugal (2017); South: Let Me Begin Again, Goodman Gallery Cape Town, Africa Do Sul (2017); La Corteza Del Alma, Galeria Fernando Pradilla, Madri, Espanha (2016) entre outras.

Contributor

Vivian Braga dos Santos

Vivian Braga dos Santos has a PhD in Art History from the University of São Paulo (USP, Brazil) and researcher at the Institut national d’histoire de l’art (INHA, Paris). Her work examines the relationship between contemporary art, political conflict, history, and memory. Currently, she is focusing on a project about the tensions between contemporary art and conflicts over racial issues in Brazil.

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