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Antonio Dias e o sequestro da pop art
O programa da descolonização e do combate ao imperialismo bem como o debate das classes tinham se radicalizado e acelerado em resposta ao golpe militar de 1964. O papel das classes proprietárias no golpe ficou estabelecido. Daí os trabalhos de Antonio Dias (1944–2018) não procederem, ante a pop art, a uma assimilação simples e passiva—o que sem dúvida ocorreu quanto a algumas obras ambíguas e hesitantes de outros artistas do período. Porém, Dias, por seu turno, concebeu uma apropriação agressiva: operou um sequestro. Desse modo, a luta foi transportada para outro terreno. Trocou-se a estratégia combativa nacionalista pela internacionalista.
Assim, Dias recorreu à pop art, ligada ao imaginário do consumo, mas também a formas de imaginário cultural que lhe eram opostas: a cultura popularesca dos gibis, dos banheiros e ônibus, dos grafites e das caricaturas, e os resquícios da linguagem da Revolução de Outubro. Uma e outra linguagem valeram como operações negativas e torções, enfim, como golpes corporais desfechados contra a pop art.
Decorreu dessa constituição, deliberada a partir do rapto de forças contrárias, o alto grau de violência inerente aos trabalhos de Dias. Mário Pedrosa (1900–81) viria a dizer, em 1967, que o único purismo de Dias era o da “nua violência”. Aliás, o tema da violência, ora legítima ora não, era uma constante no período, e Hélio Oiticica (1937–80) analogamente viria a afirmar, no texto que acompanhava a apresentação, na galeria Whitechapel de Londres, em 1969, do bólide em homenagem a Cara de Cavalo: “a violência é justificada como [...] revolta, mas nunca como [...] opressão”.1
Nesse sentido, Dias efetuou, pode-se dizer, um sequestro da pop art, apropriada, devorada e deglutida, se posso insistir, por um novo “antropófago”—para recordar os termos do “manifesto da Antropofagia” (1928), de Oswald de Andrade (1890-1954). Aliás, Oiticica referiu-se à Nova Objetividade Brasileira como uma “Super-Antropofagia”. O “Super-Antropófago” da Nova Objetividade, no caso, portava as armas do corte e da montagem, desenvolvidas pela arte de vanguarda soviética. Assim, não será exagero notar que a operação de virar a pop art do avesso, avistada hoje em perspectiva histórica, pressagiou, de algum modo, o sequestro em setembro de 1969 do embaixador norte-americano Charles Elbrick (1908–83) pelo comando conjunto da Aliança Libertadora Nacional e do Movimento Revolucionário 8 de outubro.
Os clichês pop, normalmente associados à euforia padronizada do consumo e ao poderio dos EUA, foram reaproveitados por Dias com ostensivo sarcasmo, tal um troféu capturado, e, nessa condição, associados explicitamente a signos de morte. Porém as coisas não acabavam aí, ao modo de um ato de contrapropaganda, mas sim começavam a partir do sequestro. O que implicavam tais táticas?
Em primeiro lugar, o sequestro da pop art começou não como projeção ideal de si, como ocorria na abstração geométrica. Projeção narcísica, essa, que motivou Lygia Clark (1920–88), numa anotação de 1957, a observar criticamente que, na arte concreta, o eu se entregava a “uma maneira falsa de dominar o espaço”.
Diversamente, pois, da projeção idealizada de si, realizada pelos concretos, e, noutros termos (no caso, os da fenomenologia), também pelos neoconcretos, o sequestro da pop iniciava pelo recorte histórico do mundo contemporâneo. Em segundo lugar, o sequestro ocorria, pode-se deduzir, porque o autor concebia as práticas artísticas não mais como parte de domínio transcendental ou à parte—presumivelmente dotado da exemplaridade de um modelo ético-cognitivo universal, conforme pretendiam as tendências geométricas.
Em síntese, redefiniu-se a arte, a partir do sequestro da pop, como manejo de operações simbólicas, implantadas como contradiscurso ou operação de combate. Nessa perspectiva, a arte participava de um conjunto de ações estratégicas, indissociáveis de uma disputa de poder. O que estava em disputa? Quais eram os alvos?
- Cara de Cavalo era o apelido de Manoel Moreira (1941–64), que subitamente se tornou o marginal mais procurado do Rio, após uma emboscada em 27.08.1964, seguida de tiroteio no qual seu perseguidor, o detetive Le Cocq, morreu. Le Cocq foi chefe de uma milícia policial que constituiu o embrião dos muitos grupos de extermínio e “esquadrões da morte” que até hoje infestam as muitas periferias de cidades brasileiras, cometendo inúmeros massacres, raramente investigados, de jovens pobres, principalmente negros.
Liuz Renato Martins (São Paulo, 1953) é historiador. Atua como pesquisador e professor-orientador dos PPG em Artes Visuais (PPGAV-ECA/USP) e em História Econômica (PPGHE-FFLCH/USP), ambos da Universidade de São Paulo. Publicou: The Long Roots of Formalism in Brazil, Juan Grigera (ed.), Alex Potts (introd.), Renato Rezende (trad.), Chicago, HMSB-London/ Haymarket, 2019; The Conspiracy of Modern Art, Steve Edwards (ed. + introd.), Renato Rezende (trad.), Chicago, HMSB-London/ Haymarket, 2018. Como prof. visitante ou conferencista, atuou em universidades no México, Chile, Argentina, Espanha, França, Inglaterra e EUA.